Cara(o) … Desde que escolhi minha profissão dediquei a maior parte dos meus esforços a ela. Vim de uma família pobre de pessoas que buscaram longe de suas terras natais melhores oportunidades, foi muito natural também fazer esta opção quando fui aprovada num concurso público na capital. Minhas escolhas incluíram lutar contra o machismo e a repressão, coisas que fiz intuitivamente, sem ter muito as palavras certas para nomear as minhas batalhas, pois só recentemente consegui perceber o quanto tudo isso existiu em minha história desde sempre. Moro sozinha, num apartamento pequeno e confortável, mantenho minha independência financeira, não tenho acesso a muita coisa que gostaria mas minha vida é boa. Meus familiares estão há quilômetros de distância e não vejo meus amigos mais queridos desde o ano passado. Não tenho namorado (mas quero ter) e nem filhos (com a minha idade é algo cada vez mais distante), vivo este momento sozinha. Fico aliviada por não estar expondo ninguém ao risco de contaminação. Trabalho na saúde pública, quer dizer que sigo trabalhando e enfrentando o medo todos os dias, infelizmente me deparo com pessoas que banalizam a gravidade da pandemia, entre os colegas e principalmente nas ruas, muitos transitam sem máscara e parecem se orgulhar disso. O trabalho não me deixa sentir solidão, mas é um ambiente em que sinto que minha vida não tem valor pois nossas chefias têm grande influência dos nossos governantes atuais. Estou sobrecarregada com outras funções que não são do meu cargo. Semana passada um colega muito carismático e jovem morreu devido a covid19, fiquei arrasada e o medo aumentou. Acredito que meus familiares estejam bem de saúde, mas emocionalmente sei que também sentem medo e insegurança, eles procuram me poupar e falam mais do tédio de estarem em casa. O que me traz alívio é a literatura, os filmes e a música, a arte sempre me tocou muito, é uma pena andar tão cansada e não ter tempo para essas coisas no dia a dia. Minhas últimas leituras foram Terra Sonâmbula do Mia Couto e Vamos aquecer o Sol do José Mauro de Vasconcelos, se gostar de literatura são boas dicas. De noite sempre penso que posso estar contaminada, faz tempo que tenho uma dorzinha de garganta chata e persistente; quando acordo vejo que estou melhor e rio sozinha aliviada. Espero sobreviver à pandemia mas não estou otimista, sei que muitos ainda vão sofrer e padecer por ela. Abraço virtual fraterno!

A.P.

08 de Julho de 2020.

Belo Horizonte

RESPOSTA >

 

Cara A.P. Antes de mais nada obrigada por escrever. Receber a sua carta, abrir o arquivo, lê-la e reservar um tempo para responder me trouxe memórias de quando eu era criança e adolescente e me correspondia com meu pai (que morava em S.P. e eu ainda morava em Santos/SP) e com uma amiga por correspondência que morava em Portugal. Eu fico o máximo que posso em casa e meio que irritada (também) quando saio à rua e vejo pessoas sem máscara ou com máscara nos lugares mais criativos possíveis Uso máscara por entender que é um ato de cidadania, responsabilidade e amor pelos próximos, que neste caso aqui é você (puxa, não posso imaginar o que é estar trabalhando com saúde nestes tempos)! Moro com meu namorado e desde meados de março optamos por trabalhar só de casa. Até o mês de julho não entrou quase nenhum dinheiro (viva as reservas financeiras), mas nunca faltou o que fazer (me envolvo em muitas coisas e faz tempo que desassociei trabalho de remuneração). Reativei um perfil no Instagram sobre feminismo (caso tenha curiosidade @Nu_res_peito) e iniciei um curso de escrita que estava nos meus planos há mais de 4 anos. Tenho 49 anos e idealizo que escrever talvez se torne minha quarta atuação profissional. Atualmente facilito grupos, trabalho com o autodesenvolvimento de pessoas por meio de vivências e reflexões e faço consultoria em desenvolvimento sustentável. Tenho 2 gatas e 1 gato. No começo achei que eles iriam nos expulsar de casa rs, mas já se acostumaram conosco aqui 24h por dia. Para mim este período da pandemia está sendo um momento de muita criatividade e reflexão sobre os meus privilégios: tenho onde morar, tenho recursos guardados que posso usar, tenho o que cozinhar e comer, tenho uma rede de amigos com quem conversar e fazer happy hour online (quem diria….). Minha família está bem, apesar de meu avô de 90 anos sair dia sim, dia não de casa (ninguém segura ele). Mas entendi também que a dimensão de tempo para ele é muito diferente. Eu posso esperar 30-90-150 dias nesta situação (e até mais) e ir me adequando. Ele sai para comprar uma coisa ou outra e tomar um sol. Enfim, a pandemia veio escancarar também como as necessidades não podem ser generalizadas. Você ficará em meus pensamentos para que passe por este período bem – saúde mental e física – e que em breve possa abraçar e ser abraçada por quem te ama. Fique bem. Fique firme. Nós somos mulheres deste futuro que precisa emergir. Grande beijo.

C.S.

25 de Julho de 2020

São Paulo

 

RESPOSTA SECUNDARIA>

 

Olá! A.P. Estamos e vivemos em tempos de grandes mudanças e cada ação nos impulsiona para uma história e aprendizado. É encantador sentir nas suas frases sua essência e o cuidado de viver bem e para o bem, nesta energia de movimentos sentimos que o medo nada mais é que um processo de transformação e escudo que nos serve como mola propulsora para nossos marquem o chão com firmeza. Nesta caminhada que possibilita, aprender a prender que em nossa solitude reconhecemos o quanto forte somos e contribuímos ricamente nas transições de vida e da vida dos nossos pares, sou amante também da literatura, filmes, música, porque enxergo, nas artes um mundo de respostas e outras perguntas, que concebem ao meu intimo fortalecer- se para as dádivas do novo dia… E no ontem reconhecer as coisas que me direcionaram para o agora, certo de que no amanhã, existe possibilidades e oportunidades de sentir o aroma da beleza oculta que há de se viver de tudo um pouco, e as lágrimas, os risos, os medos, tenham o seu tempo e devido espaço…. Mas endurecer jamais!!! Beijos 1000, muita luz, paz e amor…

F.C.

13 de Julho de 2020.

São Paulo.